Em
tempos de proliferação de novos “ismos” e “fobias”, a velocidade das trocas
entre ciência e movimentos sociais foge da minha capacidade de compreender seus
rastros históricos e conceituais. Ideias que surgiram das ruminações iluminadas
nos corredores da filosofia contemporânea – especialmente norte-americana – são
codificadas em neologismos facebuquianos que desafiam sépticos e ensaístas da
realidade. Na tentativa de impor mudanças concretas no dia a dia das novas
categorias de “oprimidos”, há um ciberativismo
que muda os usos que fazemos da linguagem generificada, e que, assim, se
esforça por uma forma neutra, mas não usual, de se comunicar. Uma forma que, em
última instância, não evidencie diferenças entre homens e mulheres e não
escancare um sujeito óbvio para o Feminismo contemporâneo.
Portanto,
pesquisadoras feministas, como eu, bailam entre uma dimensão e outra: entre as elucubrações
de mentes afetadas pela desigualdade, mas privilegiadas pela oportunidade de
pensar sem se preocupar com a falta de casa,
comida e roupa lavada, e as demandas mais materialistas das mulheres em desvantagem
– que, em alguns grupos, passam a ser codificadas por essa nova linguagem. A minha vontade de ensaiar sobre a honestidade
intelectual inserida nesse balé não vem da exigência de uma neutralidade
científica, mas da tentativa cansada de elaborar as novas bandeiras que têm
sido apresentadas para o movimento do qual faço parte. “Eu corro pelo mundo
prestando atenção em cores que não sei o nome, cores de Almodóvar, cores de
Frida Kahlo, cores...”.
Quando
os primeiros estudos feministas se impuseram no ambiente acadêmico foram criticados
de não serem ideologicamente neutros. Apesar disso, as linhas de Estudos
Feministas se desenvolveram transversalmente a várias disciplinas. Durante as
décadas de 1960 e 1970, a Antropologia Social foi uma das mais abertas a esses
estudos inovadores, com os quais as pesquisadoras se apropriavam de teorias e
conceitos sociológicos enquanto faziam etnografias e pesquisa-ação. Talvez,
para elas, a crise existencial fosse sobre o lugar a ocupar numa academia
majoritariamente masculina, machista em muitos termos, e resistente aos temas
da vida doméstica. Era a época de uma ciência que privilegiava as dicotomias,
que enfatizava a pertença dos homens à esfera pública; enquanto às mulheres
(mais precisamente, às mães) caberia aplicar na vida privada e familiar o
conhecimento adquirido com a educação formal, recentemente conquistada pela
primeira geração de feministas.
Mas,
as etnografias curiosas e a pesquisa-ação de mulheres engajadas na desmistificação
dos problemas “privados” foram fundamentais na aproximação da Academia com os
movimentos sociais. Tal casamento acompanhou uma renovação paradigmática mais ampla:
em campos distintos, muitos pesquisadores e filósofos vinham criticando o Positivismo
– essa epistemologia tentadora e persistente que é credora do Cartesianismo. Michel
Foucault na Filosofia, Antonio Damásio nas Neurociências, Francisco Varela nas
Ciências Cognitivas, Edgar Morin nas Ciências Sociais, Paulo Freire na
Pedagogia foram alguns dos célebres pensadores que aproveitaram a onda da ciência
crítica. Ao mesmo tempo, movimentos como a Reforma Sanitária, a Pedagogia da
Libertação, a Luta Antimanicomial e o Feminismo, no Brasil, promoveram a
aproximação cada vez maior entre pesquisa científica e políticas públicas.
As
políticas públicas começaram a ser mais influenciadas por pesquisas sociais nas
décadas de 1980 e 1990, e vimos crescer em muitos países o Feminismo de Estado
ou Feminismo Institucional. Paradoxalmente, uma tendência de despolitização dos
estudos feministas foi crescendo, devido à relação com os Estados Nacionais e
as Organizações Não Governamentais – e talvez, como resposta às exigências de
objetividade da Academia. Isso significa que o Feminismo Acadêmico acabou se
afastando consideravelmente do ativismo, recorrendo à estatística e ao
universalismo que dela deriva para alimentar a formulação de leis e políticas
públicas. Era a época das políticas sociais universalistas.
Recentemente,
porém, temos observado debates intensos e esforços difusos pela continuidade da
renovação paradigmática feminista. Essa onda inclui novos focos de pesquisa
relacionados à realidade de diferentes grupos e identidades, assim como uma
proliferação de conceitos que tentam superar as dicotomias herdadas do Positivismo.
Os novos “ismos” são independentes e se inter-relacionam, mas, argumentam, não
podem ser subsumidos no antigo conceito de “patriarcado” – senão, correm o
risco de serem invisibilizados. Dar
visibilidade a todas as formas de “opressão” se torna uma estratégia usual do ciberativismo feminista, onde grupos não
muito numerosos conseguem ter voz.
Assim,
a “Mulher” enquanto sujeito universal é artigo em risco de extinção, ainda que
resista na agenda estatal e na cultura geral, porque “Mulher” tem sido
traduzida recorrentemente como aquela que é branca, heterossexual, de classe
média e privilegiada em todos os sentidos – dentro desse ativismo. Mas, vamos
com calma. Mesmo essa ainda sofre das desigualdades sociais denunciadas e combatidas
pelo Feminismo de Estado: a violência doméstica, a violência obstétrica, a
dependência econômica, a sobrecarga com o trabalho doméstico e a exploração do
trabalho sexual, enfim. Deve ser por isso que a Secretaria ainda é da Mulher, a
política é da Mulher, a saúde ainda é da Mulher, a revista é Feminina, o desejo
é Feminino, a moda é Feminina... Mas o diálogo entre ativismo, política e academia
parece sofrer uma nova metamorfose. É o tempo das políticas sociais focalizadas
– que alguns diriam, neoliberais.
Hoje,
não podemos ser acusadas de desonestidade intelectual por conciliar ciência e
política – é consenso científico que toda questão que move uma pesquisa vem de
um ambiente próprio e, portanto, nunca é “pura” de interesses. Por outro lado, vivemos
tempos de alta cobrança de produção de artigos especializados, para a
alimentação de agendas institucionais e para responder às demandas do jornalismo científico. Hoje, corremos o
risco de não prezar pela honestidade intelectual por causa da velocidade. A
velocidade com a qual as informações circulam na Internet e a sensação de se
viver num mundo supostamente globalizado podem pressionar excessivamente
pesquisadores engajados, feministas ou não. Nesse novo ritmo, recebemos muito
mais notícias de países anglofônicos do que de nossos vizinhos
latino-americanos. Sabemos mais rapidamente dos resultados de pesquisas que vem
desses países, naturalizamos seus conceitos, ignoramos seus impactos. A
capacidade de incorporação dessas informações pelo ciberativismo é imensa. E as demandas que ele coloca para as
pesquisadoras feministas é intensa. Mas, temos pouco tempo para refletir,
debater, ler, estudar.
Eu
não tenho tempo de compreender os neologismos que caem da filosofia pós-gênero americana
nos colos dos ciberativistas. Esse é
um fenômeno excepcional, tendo em vista que conceitos “ultrapassados” como “luta
de classes” ainda não são consensuais entre militantes e acadêmicos das antigas,
mas palavras como “binarismo” e “transfobia” são facilmente usadas e
transmitidas via blogs, vlogs, asks e twitters. Enfim, parece que a nova onda
filosófica está movendo uma nova gramática feminista. E eu estou tentando me
movimentar sem perder o timing.
Mesmo
sem entender tudo desse universo “novo”, não posso parar e me fechar num asilo
intelectual. E, como pesquisadora, não posso simplesmente incorporar os
neologismos, sem ter consciência de sua aplicabilidade. Quero continuar a
pesquisar e a fazer o diálogo entre ciência e ativismo, sem cair na tentação da
desonestidade intelectual ou da ingenuidade política. O que fazer?
O
artigo agora se tornará um pouco normativo, e eu me perdoo por isso, já que é
em nome de uma causa nobre.
Então,
o primeiro ponto que me parece importante para evitar a desonestidade, enquanto
acadêmica feminista, é o da escolha do projeto epistemológico. Afirmar uma
pesquisa feminista significa uma forma inovadora de se fazer ciência – um
paradigma revolucionário. Para Carol Gilligan, o
patriarcado nada mais é do que um paradigma injusto de mundo, que antagoniza
homens e mulheres, dividindo-os em polos, hierarquizando-os e distribuindo
privilégios vistos como “naturais”. A ciência patriarcal positivista valoriza a
razão em detrimento dos afetos e a objetividade em detrimento da subjetividade.
Porém, Gilligan e outras feministas reivindicam que se valorize a racionalidade
implicada nas categorias sociais consideradas subalternas, porque afetos e
razão não são antagônicos. Assim, uma pesquisadora que pretende fazer ciência e
ativismo feminista com honestidade intelectual deve privilegiar um paradigma epistemológico
revolucionário, e deixa-lo claro para seus leitores.
Em
segundo lugar, afirmar-me uma pesquisadora feminista significa que escolhi um
objeto inserido na dimensão política desse grande movimento. Ou seja, as minhas
questões surgem do reconhecimento desse movimento e do que parece importante
para seu avanço. Isso implica então em conhecer a História do Feminismo e dos
grupos que dialogam com ele transversalmente. Esse conhecimento não se dá,
porém, de forma passiva, mas autocrítica, identificando outras vozes, múltiplas
vozes, que se abrigam sob o guarda-chuva “Mulher” e que por vezes ficam
invisibilizadas numa universalidade. Este esforço de encontrar recortes de
estudo que não mascarem a multiplicidade do movimento é o que podemos chamar de
radicalização do Feminismo – que significa, na dimensão do ativismo, o esforço
de radicalização da democracia.
Esse
ponto é especialmente crítico para uma prática honesta, porque não é incomum
vermos afirmações que opõem novos conceitos feministas aos antigos, como a
dicotomia renovada entre corpo e mente ou natureza e cultura, em se privilegiando
o conceito de “gênero” em detrimento de “sexo” e vice-versa. Como bem apontou Gisela Bock, ao invés de opor essas
categorias de análise ou eliminar o “sexo” como se bastasse falar de “gênero”,
precisamos discutir como elas se complementam e como elas se ligam,
historicamente. Porém, temos de um lado, algumas Feministas
Radicais e Ecofeministas
acadêmicas resistindo à participação de mulheres trans nos grupos ativistas,
baseando-se na definição genital de “Mulher” – recuperando, portanto, a antiga
e ainda não vencida epistemologia patriarcal. De outro, temos acadêmicas Transfeministas
que pretendem renovar o Feminismo pela defesa da supremacia do desejo, baseando-se
na Teoria Queer, e arriscando-se a invisibilizar a desigualdade estrutural
entre pessoas do sexo feminino e pessoas do sexo masculino, e a não considerar as
diferenças de percurso entre pessoas transgêneras, transexuais e não-binárias.
Essas
disputas conceituais não serão tão acirradas se compreendermos que os recortes
de pesquisa são limitados e não podem ser traduzidos como verdades absolutas e
universais, principalmente quando transferidos para o ativismo. Como
pesquisadora, devo reconhecer que a minha voz não representa a muitas outras
que ainda não tem a mesma proporção de expectadores – que não tem a garantia de
um lugar na democracia. Essa desigualdade, ainda que reconhecida, não pode,
contudo, ser solucionada pela disputa polarizada nos ambientes acadêmicos e nos
movimentos sociais. Isso quer dizer que a apropriação de abordagens
específicas, como a Teoria Queer e o Ecofeminismo, não deve descartar o lugar
de diferentes experiências de gênero e sexualidades, que escapam a seus cânones
teóricos.
Podemos
reconhecer especificidades de pesquisa que não são necessariamente excludentes.
Uma pesquisadora feminista radical pode se focar na socialização patriarcal
pela qual as meninas com genital feminino passam, sem que isso desqualifique pesquisas
sobre mulheres e homens que fazem operação de redesignação
genital e/ou terapia hormonal. Da mesma forma, é possível discutir a
performatividade de gênero das pessoas trans ou não trans, reconhecendo que as
identidades sociais “feminina”, “masculina”, e “não-binária” são culturalmente
compartilhadas e individualmente sentidas. Filosofar não significa criar uma
explicação coerente para tudo, antes, é questionar, colocar questões onde
parece não caber mais dúvidas. De fato, esse exercício pode incomodar, gerar
debates acalorados, e promover mudanças linguísticas interessantes (ou não).
Mas, a realidade não pode ser contida num quadro conceitual, numa tela
filosófica única. Então, não posso exigir dos outros que adotem as minhas
palavras, os meus neologismos, as minhas lentes
de opressão. Tenho que evitar que minhas ideias sirvam para a fabricação de
novas dicotomias.
A
tentação, porém, de se recorrer a essa fabricação é grande. É tentador adotar
uma explicação que sintetize a origem de todas as formas de opressão – o que a
filosofia queer de Judith
Butler faz, talvez sem anunciar, explicando as desigualdades de gênero pela
existência de uma ordem heternormativa “anterior” aos sexos. Apesar de toda a
potência dessa filosofia, críticas sobre seu potencial imperialista têm sido
levantadas. Lalla Kowska-Régnier, ativista
transexual, também critica o movimento queer porque, na prática, a priorização
da ideia de gênero como performatividade diminui as experiências materiais das
pessoas que querem fazer terapia hormonal ou cirurgia de mudança de sexo –
colocando-as não raramente como fruto da heteronormatividade, uma ordem a ser
combatida. Lalla considera que a relação entre corpo e escolha de gênero pode
ser diversa e não deve ser restrita por uma identidade política
pré-determinada, advogando assim uma relação autônoma e dialógica com os
movimentos feministas e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros). Também,
o historiador árabe Joseph
Massad tem apontado a “fabricação” americana da identidade “gay árabe” e dos
Estados árabes como “inimigos” dos gays a partir das defesas de um movimento
queer globalizado. De forma bastante contundente o pesquisador mostrou o esforço
de alguns historiadores anglo-saxônicos para produzir conclusões que
corroborassem a existência “natural” de uma identidade queer em todo o globo,
sem considerar estudos sobre gênero e sexualidade desenvolvidos anteriormente
por pesquisadores árabes e configurando uma visão unilateral, sem, contudo, reconhecer
a limitação de seu recorte.
Por
outro lado, no Brasil, Débora
Diniz, confrontada com as demandas do ciberativismo,
em entrevista para o site Blogueiras Feministas, não se constrangeu ao afirmar
as limitações de suas escolhas e conclusões de pesquisa. Apesar do amplo
interesse, que vai da saúde no parto e gestação até saúde mental e
transgeneridade, a pesquisadora feminista deixou clara sua necessidade de fazer
recortes, mas também, o reconhecimento de outros enfoques que podem ser
desenvolvidos por outras pessoas. Dessa maneira, ela tem contribuído para a
construção de políticas na área de gênero relacionadas aos direitos
reprodutivos, que são geralmente baseadas no percurso de mulheres
heterossexuais, mas que, ao mesmo tempo, permitem o diálogo com grupos
minoritários.
Na
Saúde Pública, a militância por políticas universalistas produziu a criação de políticas
para as mulheres que favoreceram principalmente as mais pobres. São políticas
baseadas numa concepção essencialista da identidade feminina, porque partem do
reconhecimento do percurso reprodutivo e pretendem combater as doenças e mortes
mais comuns na gestação, parto e no aborto inseguro. Mesmo assim, justamente
por partir da identificação de necessidades específicas do corpo reprodutivo, esse
tipo de abordagem permite a inclusão de homens transgêneros que podem
engravidar – o que tem sido pouco discutido pelo movimento feminista. Parece
que um dos maiores desafios à democratização e melhoria dos serviços públicos
de saúde tem sido o crescimento de um mercado privado de saúde beneficiado por
investimentos públicos, e não a adoção de “mulher” como grande guarda-chuva
identitário. Nessa área, em especial, uma abordagem de pesquisa que privilegie
a concepção de gênero como desejo, provavelmente não contribuirá tanto para a
militância, em especial para a descriminalização do aborto e o acesso ao parto
humanizado. Ainda acredito que alimentar políticas de saúde que se baseiam no
percurso reprodutivo da “maioria” não impede que caminhemos na desconstrução
das normas culturais de gênero relacionadas à maternidade e à sexualidade, por
exemplo.
Concluo,
assim, que a honestidade intelectual é necessária para o progresso da renovação
paradigmática do feminismo e é uma estratégia potente para o alargamento da
democracia. Ela favorece diálogos e embates mais claros e facilita a
identificação das relações de poder que se instalam na própria academia. Usar
conceitos de fora da Teoria Queer e não adotar uma estratégia que emana de
determinada teoria não é em si transfobia. Pensar no gênero como
performatividade, dentro de um recorte específico, também não é um desfavor ao
movimento feminista como algumas mais radicais tem divulgado. Se eu me
acostumar a olhar o mundo pela minha tela, sem me esforçar por “entender o que
meu irmão ouve”, ficarei isolada no asilo que mencionei. Mas, se eu me
apropriar acriticamente de seus neologismos e suas filosofias, não serei
honesta. Então, façamos um trato. Um trato pela continuidade desse balé
necessário e potente entre espaços acadêmicos, virtuais, associativos,
políticos. E viva os “ismos” que contarão a História.